Bruxas, boitatás, lobisomens, mulas-sem-cabeça. Dizem que os tempos de Quaresma são os preferidos dos bichos assombrosos, que pairam pelas ruas estreitas da Enseada de Brito, o mais antigo bairro de Palhoça. ‘Casa’ dos açorianos, o vilarejo em plena Grande Florianópolis preserva como pode as tradições e crendices daquele povo.
O cenário colonial favorece a manutenção da cultura: tombada como Patrimônio Histórico, a praça central mantém as características dos anos 1740, quando os portugueses chegaram para povoar a vila. Neste sábado, Palhoça completa seus 127 anos oficiais, um século “mais jovem” dos que ali começaram a ocupar.
Isso porque o município pertenceu a Florianópolis até 1833, quando São José foi separada da Ilha de Santa Catarina, levando consigo as terras agora palhocenses. Em 24 de abril de 1894, foi a vez de Palhoça se tornar politicamente independente.

Aos 65 anos, o artista João Dias, o Dão, faz parte dessa preservação. As superstições herdadas da família são contadas dentro do Centro de Vivências Caminho de Nazaré, casa de retiros idealizada por ele há 30 anos.
Em meio às paredes envolvidas por esculturas, relevos e mosaicos, Dão sabe que vive num reduto à parte de Palhoça, município conhecido pelos altos índices de desenvolvimento urbano.
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“Com a era da computação foi muito deturpado, mas eu vivi ainda muitas lendas. Me lembro que, em noites de lua cheia, a minha vó fechava a casa cedo porque era a noite em que as bruxas saíam para ear. Elas cruzavam o mar da Enseada para o Ribeirão da Ilha”, revela o artista.
Em uma dessas madrugadas, ele conta ter avistado um corajoso grupo de pessoas na areia da praia. Aí, pronto. “Tinha uma baleeira que estava fora do lugar, cheia de crina de cavalo amarrada, enosada”, lembra. Segundo ele, as bruxas teriam sido as autoras da arte.
“Elas trançavam as crinas dos cavalos para sair voando com eles. Elas saíam também com as baleeiras, com as embarcações”.

Mordida misteriosa 4a153s
Um dos causos mais marcantes aconteceu ainda na infância, quando Dão presenciou a avó acordando subitamente, durante a madrugada, com um grito estrondoso. “Ela foi correndo pra cozinha, pegou um monte de alho para botar na perna e, no outro dia, acima do joelho, tinha uma [marca de] boca, bem roxa”, como se fosse uma mordida de alguém.
Segundo a crendice local, quando o alvo da “mordida misteriosa” coloca rapidamente a especiaria sobre o ferimento, a pessoa responsável pelo ataque desenvolve uma reação na própria boca, que fica envolvida por machucados. Dessa forma, o mal volta ao autor.
“Elas contavam que, depois, iam verificar se a pessoa suspeita estava com a boca inflamada. Eu não sei o resultado disso, mas que eu vi essa cena com minha avó, eu vi”, diz Dão, em tom de brincadeira.
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Existem as superstições que são comuns a todas as regiões colonizadas por açorianos. Assim como na llha de Santa Catarina, na Enseada de Brito havia a certeza de que a sétima filha mulher de um casal seria, na verdade, uma bruxa.

Para quebrar esse “encanto”, a ex-diretora da Casa de Cultura Açoriana da Enseada de Brito, Mary Lúcia de Souza da Silveira, conta que a filha mais velha deve batizar a caçula, dando-lhe o nome de Benta.
Mas “para espantar ou desencantar uma bruxa”, pode-se usar tesouras abertas, ceroulas amarradas, alho, rezas e benzeduras, destaca a moradora, que faz parte de uma família bem tradicional da vila.
Enquanto escreve um livro sobre as crendices da Enseada, Mary adianta: as bruxas teriam um pacto com o diabo.
“Lançam ‘mau-olhado’, enfermidades e malvadeza através de suas bruxarias. Transformam-se em mariposas para entrar nas casas pelo buraco da fechadura, a fim de chupar o sangue de crianças, preferencialmente aquelas que ainda não foram batizadas”.
O diabo tá solto! 5p4da
Dentro de um casarão colonial datado de 1780, hoje vive o museólogo aposentado pela UFSC Gelci José Coelho, conhecido como Peninha, de 71 anos. Amigo pessoal e guardião de Franklin Cascaes, o folclorista, natural de São Pedro de Alcântara, dedica-se aos estudos da cultura açoriana com paixão de menino. Embora garanta que já viveu muito, sempre “intensamente”.

Segundo Peninha, o tempo da Quaresma é o momento em que mais aparecem criaturas místicas na Enseada de Brito.
“É um momento muito perigoso, sabe? Porque Cristo se isola, vai para o deserto confabular com o Pai. Nesse momento, [os moradores] se sentem desprotegidos, porque Cristo não está presente”, explica.
O folclorista conta que é nessa hora que as bruxas, lobisomens, vampiros e mulas-sem-cabeça estão à solta, em bandos, pairando pelo lugarejo.
Na semana que antecede a Páscoa, a prisão e morte de Jesus são lembradas – por isso, o cuidado tem que ser redobrado: “se Cristo está morto, o diabo tá solto. Olha o perigo!”.
O artista Dão lembra que há pessoas que até se isolam na Sexta-feira Santa. “Quando alguém acorda e a um gato preto, naquele dia a pessoa não sai de casa”, afirma. Ele conta que essa tradição é mais forte entre os moradores antigos.
“As gerações de até 40 anos não têm essas histórias”, detalha. O filho dele, de 32 anos, mal conhece os ‘causos’ da família.
Já Peninha lembra que, também na Sexta Santa, os enfermos devem tomar banho às 3h da madrugada, em águas correntes – como cachoeiras ou no mar. “Hoje, tá valendo até chuveiro”, assegura.
“Isso é uma coisa que eles praticam ainda na Enseada: O banho santo. A Quaresma é uma coisa muito forte ainda”.
Benzedura para embruxamento 4u4b
Nos casos de embruxamento, o jeito é procurar os benzedores. “O que não tinha explicação lógica, era sobrenatural, então tinha muita benzedeira”, conta Peninha.
A cultura popular diz que quem nasce na Sexta Santa pode ser dotado de poderes milagrosos. Para isso se concretizar, basta colocar um grilo na mão da criança assim que ela vem ao mundo.
“Aqui tinha um moço que botaram o nome de Santo, ele tinha esse poder. Ele curava, fazia benzedura”, revela Peninha.

O próprio Dão é um benzedor. Ele destaca as forças da oração e da mente, opção viável com a escassez de médicos na época da colônia – o que propiciou o fortalecimento da benzedura no reduto.
“Médico era só em Florianópolis. Então aqui as pessoas se socorrem muito. Na minha casa, morou uma mulher chamada Maria Rita, ela morreu com 98 anos, era da Gamboa. Ela benzia de tudo, foi com ela que aprendi muita coisa”.
Febre, dores no corpo e criança com falta de apetite são motivos recorrentes para aplicar a benzedura. “Podia ser mau-olhado, podia ser quebranto, podia ser olho grande, qualquer coisa”, explica Dão.
Praga de Padre 4fm34
Reduto de gente muito católica, os moradores da Enseada de Brito adoram ouvir os sermões na igreja. Também é forte a atividade da pesca. Mas essa junção já causou problemas, conta Peninha.
Há quem diga que o vilarejo segue pacato por causa de uma praga rogada por um antigo padre, que perdeu a compostura quando fiéis se distraíram na missa, com o início da safra da tainha.
Segundo o museólogo, há sempre um pescador que fica como vigia, monitorando a chegada do peixe. Em uma ocasião, ele anunciou a temporada aos gritos de “taiiiiinha!”, durante o sermão do padre. A igreja fica localizada de frente para o mar.
“Um homem que estava na igreja e ouviu, se levantou e saiu para atender a pesca. Um outro amigo também saiu. Praticamente os homens todos saíram no meio da missa”, relata o museólogo. As mulheres, segundo ele, não resistiram e também deixaram o templo.

O padre teria ficado sozinho entre os bancos vazios. “Ele foi na porta e rogou uma praga, que é a coisa que eles mais temem: praga de padre. Praga de padre pega! E ele rogou uma praga para a Enseada, que ela ia crescer como rabo de cavalo, para baixo. E a Enseada sempre foi assim, quietinha”, alerta Peninha.
Preservação também é estrutural 3am4e
A calmaria da Enseada de Brito é um de seus grandes prestígios. De acordo com o historiador Francisco do Vale Pereira, do NEA (Núcleo de Estudos Açorianos) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), o modo de viver da comunidade tem muito a ver com as características físicas do local, que se mantém preservadas desde 1747, quando a vila começou a ser povoada por casais açorianos.
Francisco conta que o local foi conhecido durante as navegações, já que funcionava bem como ponto de descanso e reparo das embarcações. “Era um núcleo estratégico, que ainda não tinha naquela região”.
“Essas enseadas, neste período de expansão portuguesa pelo Brasil meridional, eram fundamentais, porque os barcos sofriam uma série de avarias – eram feitos de madeira, não tinham nenhuma estrutura metálica”, explica o historiador. Como enfrentavam vento e correnteza, os barcos acabavam se “esfarelando”, muitas vezes.