Antes que os primeiros colonizadores açorianos chegassem ao vilarejo de Nossa Senhora do Desterro, em 1748, e os navegadores europeus explorassem a fundo o litoral Sul do Brasil, na segunda metade do século 18, muita coisa aconteceu na Ilha de Santa Catarina. A iconografia é rara e os registros, esparsos, especialmente sobre os dois primeiros séculos após a descoberta do Brasil, mas é consenso que as baías entre a Ilha e o Continente foram palmilhadas por piratas e aventureiros de má estampa que traficavam madeira, escravos e peles de animais. Esse era o perfil dos primeiros moradores não nativos, porque parte dos que desembarcaram permaneceu entre os indígenas da região.
Sabe-se que ainda antes de 1500 o Sul do Atlântico era cortado por embarcações que buscavam o caminho das Índias e há a suspeita de que o navegador espanhol Vicente Añes Pinzon aportou no litoral catarinense em 1508. A partir de 1514, Nuno Manoel e Cristóbal Lopez de Haro, seguidos por Juan Dias de Solis, encostaram na chamada Ilha dos Patos. Houve naufrágios e alguns tripulantes não seguiram viagem, que geralmente tinha como destino o rio da Prata. Um deles foi Aleixo Garcia, que em 1524 partiu acompanhado de índios, brancos e mamelucos em direção à Bolívia, pelo interior do continente, lá chegando antes dos espanhóis.

A lista de aventureiros só crescia, e nomes como dom Rodrigo de Acuña e Sebastião Caboto se detiveram na região para reabastecimento e conserto de avarias em seus navios. Caboto, aliás, teria sido o responsável por dar nome à Ilha de Santa Catarina, em homenagem à santa ou à sua mulher Catarina de Medrano – a dúvida persiste até hoje. Em 1541, nada menos que 400 homens que acompanhavam dom Alvear Nuñes Cabeza de Vaca ficaram oito meses acampados aqui. O comandante se tornou o primeiro governador oficial da Ilha, numa época em que a região era disputada por portugueses e espanhóis e não havia, oficialmente, um dono da vastidão de terras continente a dentro.
O alemão Hans Staden, que também sobreviveu a um naufrágio, foi outra figura importante no primeiro século da ocupação da região. Ele incentivou os indígenas a plantarem mandioca para abastecer as embarcações que iam rumo ao sul do continente. Houve casos de exploradores que trucidaram nativos e outros que foram mortos por eles, por conta de barbaridades cometidas contra os indígenas e suas mulheres.
Três séculos atrás, uma vila de 130 moradores
Em 1582, quando os espanhóis dominavam Portugal (a União Ibérica foi de 1580 a 1640), corsários comandados pelo inglês Edward Fenton protagonizaram o primeiro registro de pesca da tainha – que os indígenas chamavam de curimã e os portugueses de fataça – no mar aberto. Sobre essa matança, o que ficou documentado fala em “600 tainhas grandes em um só lanço, além de um grande porco-do-mato e muitas gaivotas, magras, porém, deliciosas”. O período de submissão de Portugal ao rei da Espanha foi de abandono para Santa Catarina, entregue à ação de piratas e corsários.
Foi em 1763 que se ergueu a primeira capela de pedra e cal na vila ainda insipiente. Oito anos depois, o bandeirante paulista Francisco Dias Velho já dava ordens na Ilha e começou a nova povoação que hoje é considerada o marco zero da capital catarinense e a data de sua fundação oficial. Morto por piratas em 1689, ele é tido como o fundador de Florianópolis e tem uma estátua em sua homenagem no aterro da baía Sul, próximo às pontes Pedro Ivo Campos e Colombo Salles.
No início do século 18 uma viagem de inspeção feita pelo capitão Manoel Gonçalves de Aguiar constatou que moravam na Ilha apenas 22 casais, ou cerca de 130 moradores. A burocracia chegou em 1720, quando foram nomeadas as primeiras autoridades locais – um capitão de ordenanças, um juiz ordinário, um escrivão de órfãos e um tabelião. No dia 23 de março de 1726, ele foi elevado de categoria, ando a se chamar de Villa do Desterro.

Depois de mais algumas visitas de viajantes estrangeiros a caminho do Sul do continente, chega o célebre navegador inglês George Anson, que em 1740 registrou e deixou relatos das grandes belezas da Ilha e regiões próximas. Segundo o historiador Gilberto Gerlach (1943-2021), no livro “Desterro – Ilha de Santa Catarina”, a viagem fechou “este período de descobrimento, com uma nova era se iniciando por volta de 1750”.
O maior movimento de migração do Brasil colonial
Ainda pouco habitadas, a Ilha de Santa Catarina e a região fronteira tinham uma economia baseada na coleta de frutos e raízes, caça, pesca, alguma criação de gado e produção artesanal de utensílios de palha, cipós e fibra de buriti antes da chegada dos primeiros emigrantes açorianos, em 6 de janeiro de 1748. O governador José da Silva Paes apelou ao governo português para que mandasse colonos dos Açores visando à ocupação humana do vasto território, o que coincidiu com o desejo de muitos ilhéus de deixarem o arquipélago, fustigado pelo vulcanismo, pela falta de alimentos para todos os moradores e pelo extremo isolamento da região, situada a quase 1.500 quilômetros do continente europeu.
Outro fator que contribuiu para a concretização desse projeto foi o interesse da coroa portuguesa de povoar pontos estratégicos do Sul do Brasil, região também cobiçada pela Espanha. Os açorianos já haviam emigrado para a Bahia, o Pará e o Maranhão, nos séculos 16 e 17, mas a vinda de quase 5.000 pessoas para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, em meados do século 18, representou o maior movimento de chegada de estrangeiros no Brasil em todo o período colonial.
Antes disso, em 1738, havia sido criada a capitania de Santa Catarina, desmembrada de São Paulo, e o governador Silva Paes investiu na construção de fortalezas para defender a região de possíveis ataques espanhóis.
Esses e outros acontecimentos mudaram radicalmente o perfil humano e econômico da região. Relatos de navegadores que chegaram antes dos açorianos davam conta de que havia aqui algumas dezenas de casas e uma economia de subsistência baseada na extração de produtos da natureza. Quando os açorianos aportaram na Ilha, a população local era de cerca de 300 habitantes, e toda a capitania não reunia mais que 5.000 pessoas.
Os emigrantes trouxeram a esperança em dias melhores, muita fé em Deus e disposição para trabalhar. Porém, sendo agricultores na terra de origem, precisaram se adaptar a práticas que os indígenas já tinham, como a pesca com barcos e instrumentos rudimentares e o plantio e beneficiamento da mandioca, já que o trigo, pródigo no solo vulcânico dos Açores, não vingava no clima quente e úmido do litoral brasileiro.
Além dos indígenas, esses emigrantes encontraram no Desterro, antigo nome de Florianópolis, remanescentes dos bandeirantes que haviam fundado o primeiro povoamento na Ilha, na segunda metade do século 17. Com os novos inquilinos, surgiram as freguesias de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão, Santíssima Trindade, Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, São Miguel (Biguaçu), São José da Terra Firme e outras, no continente.

De dia na lavoura, de noite na pesca
Ainda que nem todas as promessas da coroa tenham sido cumpridas, os novos moradores receberam terra e ferramentas e puderam erguer suas casas. Alguns emigrantes de melhor condição financeira receberam sesmarias e conseguiram regularizar e obter títulos dos lotes recebidos. “Foi um longo processo”, diz o historiador Sérgio Luiz Ferreira. “O rei dava as terras, mas poucos tinham o aos processos de legalização”.
Mesmo assim, o solo foi cultivado e os colonos avam o dia na lavoura, dedicando a noite para a pesca – rotina que se manteve em muitas comunidades do litoral catarinense até a segunda metade do século 20. O historiador Oswaldo Rodrigues Cabral chamava os emigrantes de “anfíbios”, porque plantavam e faziam da pesca uma atividade secundária, de reforço ao orçamento familiar. A caça à baleia foi uma atividade que vigou mais tarde e gerou renda e ocupação em vários pontos da orla.
A dispersão por outros municípios do litoral foi acentuada em 1777, com a invasão espanhola, forçando integrantes da segunda geração de açorianos que moravam na Ilha de Santa Catarina a ir para Penha, Barra Velha, Laguna e Tubarão. Também houve as levas que se dirigiram ao Rio Grande do Sul, onde os emigrantes se dispersaram por causa das guerras de fronteira, mas onde também deixaram marcas fortes e deram origem à atual cidade de Porto Alegre.
Com todas as dificuldades – da travessia ao estabelecimento na nova terra – que enfrentaram, os açorianos mudaram o perfil do litoral catarinense, e Florianópolis, que comemora agora o seu 350º aniversário, deve muito a esse povo que desbravou a região e deixou um rico legado para as gerações que se seguiram.