Quando as pessoas andam pelas ruas e praças, acampam ou fazem trilhas no interior da Ilha de Santa Cataria, podem não se dar conta de que estão pisando na história de Florianópolis. A cidade está comemorando seu 350º aniversário, mas para além dos documentos escritos, leis e decisões de autoridades está o ado não documentado, ou registrado por restos de machados de pedra, conchas ou peças de cerâmica indígena que não fazem parte dos objetos de estudo da historiografia convencional.
Bem antes dos navegadores, colonizadores pioneiros, piratas, corsários e contrabandistas, e antes ainda dos bandeirantes e dos casais açorianos que mudaram a história local, a região da Capital catarinense era habitada por tribos que plantavam, iam à caça e à pesca, tinham seus rituais de festa e luto, lutavam com grupos rivais e aproveitavam a generosidade do solo e da natureza para garantir os meios de subsistência.

Os arqueólogos falam que há 5 mil anos, com base em boas evidências, já existia gente se locomovendo na Ilha e nos amplos espaços do Continente. É desse tempo o mais antigo registro coletado por arqueólogos que desde o século 19 escavam sambaquis e identificam oficinas líticas e inscrições rupestres na região. Durante mais de quatro milênios, esses povos não foram importunados por forasteiros e exploradores.
Existem pelo menos 220 sítios arqueológicos catalogados, em lugares como Rio Vermelho, Lagoa da Conceição, Ingleses, Santinho, Rio Tavares, Barra da Lagoa, Pântano do Sul, Ribeirão da Ilha, Joaquina, Carianos, Ratones e Ponta do Sambaqui.
Uma boa maneira de conhecer o legado dos moradores ancestrais de Florianópolis e do litoral catarinense é visitar o site do grupo Floria Arqueológica, criado em 2014 e vinculado ao MArquE (Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC Oswaldo Rodrigues Cabral). Ali, a equipe do Leia (Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Arqueologia) mantém e divulga informações coletadas e registradas por pesquisadores do porte de padre João Alfredo Rohr, o grande arqueólogo cujo acervo está no Museu do Homem do Sambaqui, no Colégio Catarinense, em Florianópolis.
O professor Lucas Reis Bueno, arqueólogo do Departamento de História da UFSC e diretor do MArquE, sonha com o dia em que os gestores públicos vão levar em conta os vestígios do ado antes de abrir estradas, construir viadutos e autorizar empreendimentos imobiliários na Capital. “Temos muito a aprender com os povos antigos, e é possível crescer sem destruir, mesclando desenvolvimento e história”, afirma ele.
Sítios sumiram com a construção de casas e estradas
Nos últimos anos, a equipe do Leia recadastrou e sistematizou os dados existentes, utilizando livros e documentos e voltando aos sítios visitados pelo austríaco Charles Wiener, no final do século 19, e depois por Anamaria Beck, Teresa Fossari, Gerusa Duarte e pelo padre Rohr, entre tantos outros, incluindo estudantes universitários que fizeram pesquisas e escreveram dissertações e teses sobre o tema.
O trabalho dos arqueólogos e alunos é complexo porque nem todos os sítios registrados por antigos pesquisadores são visíveis ou resistiram à expansão urbana da Ilha. “Muitas casas e ruas foram feitas em cima dos nossos sambaquis”, diz o professor Lucas Bueno. Ferramentas foram encontradas em áreas ocupadas por roças já cultivadas e que o mato cobriu quando o plantio nas encostas foi abandonado.

O grupo também publicou o e-book “Florianópolis arqueológica”, que está disponível no site da Editora da UFSC (editora.ufsc.br/estante-aberta/) e traz artigos sobre as características do patrimônio arqueológico da Ilha, a história das prospecções e descobertas, os sambaquis e o que eles continham, a arqueologia da diáspora africana e estudos sobre sítios como o do Canto dos Araçás, Ponta das Almas e travessão do Rio Vermelho.
No site do Floripa Arqueológica há ainda um resumo das características de cada sambaqui, oficina lítica e inscrição rupestre. Os lugares mais citados por guias turísticos e reportagens são os sítios do Santinho, de fácil o, e da ilha do Campeche, neste caso com oficinas que atraem os visitantes interessados em conhecer o legado dos amoladores-polidores de muitos séculos antes da chegada do homem branco no litoral catarinense. No entanto, o acervo vai mito além disso.
Registro do modo de vida das populações pré-coloniais
Consultar o site do Floripa Arqueológica equivale a fazer uma viagem por sítios que podem estar a alguns os de onde caminhamos ou transitamos de carro. Ao contrário do que acontece em ville e Garopaba, por exemplo, onde os sambaquis chegam a ter mais de 30 metros de altura, no litoral central os sítios são pequenos e, por isso, fáceis de ser cobertos pela vegetação ou desaparecer com a construção de residências. Nem todas as pessoas dão a devida importância a esse patrimônio, e há casos em que os nativos nem sabem que moram ao lado de um antigo cemitério indígena.
Esses depósitos de conchas, vestígios ósseos de animais, artefatos líticos e, em alguns casos, restos de ossos humanos ajudam os arqueólogos a conhecer o modo de vida, os hábitos alimentares e práticas cotidianas de populações pré-coloniais. Entre os cerca de 100 sambaquis registrados por pesquisadores na Grande Florianópolis está o do Alto Ribeirão, perto de um rio e num local conhecido pelos moradores como Caminho da Volta. Ali, o padre João Alfredo Rohr descobriu restos de ossadas humanas, mas a instalação de postes de energia e a abertura de uma estrada fizeram praticamente desaparecer os vestígios originais.

No Canto da Lagoa, há sítios conchíferos datados de até 1.600 anos atrás. Uma unidade bem preservada está no Canto dos Araçás, na Lagoa da Conceição, a cerca de 60 metros do espelho d’água. Essa é uma curiosidade citada pelo arqueólogo Lucas Bueno: há cerca de 5.500 anos, a atual Ilha de Santa Catarina era um arquipélago formado por três ilhas separadas que depois se juntaram, graças ao recuo do nível do mar. “Nesse tempo a lagoa era mais aberta e o Pântano do Sul estava coberto pela água”, diz ele.
Os sítios conchíferos são a modalidade mais comum de remanescentes dos antigos moradores da região. Um deles está no Rio Vermelho, próximo à lagoa, e como tantos outros fica dentro de uma propriedade privada.
As oficinas líticas, locais onde eram produzidos artefatos por lascamento, são muito comuns na Ilha e arredores, geralmente junto a costões. Elas podem ser encontradas nos Ingleses, Lagoinhas do Leste, Barra da Lagoa, Matadeiro, Naufragados, Caiacanga, Galheta, Pântano do Sul e Ponta das Canas, entre outros lugares.
Já as inscrições rupestres aparecem com destaque nas ilhas do Arvoredo e Moleques do Sul e em balneários como Santinho, Ingleses e Ponta das Canas.
Para saber mais…
A lei federal nº 3.924/61, sancionada pelo presidente Jânio Quadros, trata da política de conservação dos sambaquis. Em Florianópolis, uma lei municipal também cuida desse tema. A cidade é uma das poucas do Brasil que tem uma legislação específica visando à proteção de sítios arqueológicos.
A maioria dos sambaquis da Grande Florianópolis é herança de anteados dos povos guarani atuais. Eles estão na superfície ou próximos dela, com vestígios enterrados a 10 ou 15 centímetros de profundidade.
A UFSC não tem curso de Arqueologia, por isso a equipe do Leia é reforçada por alunos de Antropologia, História, Museologia e Geologia. No MArquE, atuam quatro arqueólogos – dois professores e dois servidores da universidade.
O projeto Floripa Arqueológica foi viabilizado a partir de convênio com o Iphan e financiamento do CNPq. O MArquE detém o maior acervo arqueológico de Florianópolis e um dos mais importantes de Santa Catarina.
O antropólogo Lucas Reis Bueno considera “um equívoco” falar de inscrições fenícias na costa catarinense. Os desenhos e formas geométricas recorrentes apontam que os registros são de indígenas que habitaram a região.
Só no entorno da Lagoa da Conceição existem mais de 20 sítios arqueológicos, que quase ninguém conhece. O que foi uma herança de quase 5 mil anos viu-se ameaçado nas últimas décadas pelo grande aumento da densidade populacional da área.
Uma das inscrições rupestres íveis está localizada em um dique de diabásio (rocha semelhante ao basalto) no canto sul da praia Mole, em área de preservação permanente. Apresenta inscrições geométricas (triângulos, quadriláteros, linhas retas e linhas poligonais paralelas) gravadas por meio de picoteamento e polimento.