Morar embaixo da ponte pode parecer má sina, destino inglório de quem perdeu tudo e ficou sem abrigo. Mas, no caso da Hercílio Luz, há famílias com décadas de convivência com a gigante de ferro que, ao mesmo tempo, assusta e encanta. No lado insular, já houve cerca de cem moradias na área entre o Museu Lara Ribas e o bar Arataca, que caíram para menos de dez depois que foi construída a avenida Beira-Mar Norte. Ali ainda há nove ranchos de pesca ativos, mas o lugar parece perdido, abandonado, num silêncio só cortado pelos ventos que sopram no canal e pelo barulho dos homens trabalhando na reforma da velha estrutura.
Na parte continental há mais moradores, alguns deles tão acostumados ao cheiro de maresia e à faina dos pescadores que nem imaginam sair algum dia da região. É gente que cruzava a pé quando só existia aquela travessia, caminhando até a escola, a igreja, o comércio e o Mercado Público antes da interdição definitiva, em 1991. Qualquer um desses habitantes tem histórias para contar – seja dos parafusos e rebites que caíam no quintal de casa, seja das mulheres (mas não só elas) que tentaram se jogar após uma desilusão amorosa, seja ainda dos anos e anos de obras, reforços, pinturas e movimentações para dar sobrevida à ponte que, dizia-se após a inauguração, com boa dose de maldade, ligava o nada a coisa alguma.
Testemunha privilegiada desses tempos, o pescador Luiz Carlos Dutra de Mello nasceu ali 71 anos atrás e saiu quando a família foi indenizada pelo governo do Estado, na década de 1970. Além das residências familiares só havia o estaleiro que virou bar e o Forte Santana, que dava nome ao pequeno bairro isolado do resto da cidade. Ao tanque onde as mulheres lavavam roupa, ele agrega as recordações das tropas de bois que atravessam a ponte a caminho dos matadouros (um deles funcionava no Pantanal), dos canos que traziam água para a Ilha, da fiação elétrica e dos cabos telefônicos que só podiam ar por ali.
“A ponte tinha três pistas, além da arela de pedestres”, conta o pescador. “Duas pistas de madeira eram utilizadas pelos veículos de eio, caminhões e ônibus. A pista do meio era para as carroças e cavalos. Aqui embaixo ouvia-se o plac-plac das pranchas quando os carros avam. Houve um tempo em que bicicletas só cruzavam se tivessem uma plaquinha de identificação”.

Histórias dos velhos tempos 2w1t6o
O pai do pescador Luiz Carlos de Mello pegou a fase em que nem ponte havia para unir Ilha e Continente. Os bois que se destinavam ao matadouro do Pantanal atravessavam a nado, monitorados por barcos a remo – quando o bom tempo permitia. Ele também contava sobre um jipe que caiu da ponte, matando o condutor no choque com o solo no lado insular. Houve quedas assustadoras, incluindo a de um homem que perfurou todo o corpo ao bater numa cerca de proteção. Também há relatos de tentativas de suicídio mal-sucedidas, ou seja, pessoas resgatadas no mar a tempo de sobreviver. Engraçado é que vinha gente de outras cidades – Blumenau, por exemplo – para tentar morrer com mais glamour na velha ponte.
Quando começaram os engarrafamentos, nos anos 60 e 70, garotos vendiam jornais, doces e água mineral aos motoristas enfastiados que se arrastavam de um extremo ao outro da ponte. Havia até uma sinaleira regulando o tráfego nas horas de maior movimento. Quando menino, Luiz Carlos e os amigos subiam por uma rampa e alcançavam a parte alta, andando pelas correntes até em cima da ponte.
O pescador testemunhou as transformações de Florianópolis e se lembra dos garotos que mergulhavam no mar para apanhar moedas jogadas por frequentadores do bar Miramar, próximo à praça central da cidade. Recorda também da Ilha do Carvão, que abastecia os navios do porto e que sustenta hoje um dos pilares da ponte Colombo Salles. Já houve tempos em que a vela era o esporte mais popular da Capital e as competições avam invariavelmente por baixo da ponte Hercílio Luz.
Luiz Carlos Dutra é um multicampeão nessa modalidade e afirma que até dos navios de ageiros da Cia. Hoepcke as pessoas assistiam às disputas. “Uma dessas embarcações chegou a adornar de tanta gente que queria ver uma competição de remo”, conta ele.

Morrer na ponte tinha outro charme 1h3s2z
Qualquer que seja o interlocutor, ninguém fica indiferente à ponte Hercílio Luz. Há os saudosistas e aqueles que condenam os gastos astronômicos com a restauração da estrutura. Numa reportagem feita pelo ND quatro anos atrás, a moradora Maria Deli Lisboa – cuja casa ficava literalmente embaixo da ponte – mostrou uma pequena horta com pés de aipim, abóbora, repolho e um abacateiro que não crescia, mas que resistia no chão arenoso. A rudeza da vida que todos os dias dependia do mar para se manter inibia qualquer sorriso, e a descrença com a obra era inevitável porque foram muitos anos de relação íntima com a velha travessia, sempre ouvindo previsões de prazos sobre a restauração.
No rancho de madeira, o marido de Maria, Hermes Lisboa, disse que já havia tirado quatro corpos do mar – dois deles sem vida. “Peguei morto e vivo”, resume, num jeito de poucas palavras. “São mais mulheres, a maioria por causa de namorados”, conjecturou. E também acontecia mais com gente de fora, como se valesse a pena vir de Curitiba ou do interior do Estado para se jogar ali – seria uma morte mais romântica que as outras? Quase inacreditável é a história de um rapaz que caiu em terra, se levantou e saiu andando normalmente, enquanto o pescador descascava uma bacia de mariscos. “Estava chapado”, conta Maria Deli.
Eles estão ali desde os tempos das carroças, kombis, fuscas e bicicletas, além dos pedestres que dispensavam os ônibus de linha – afinal, não faz tanto tempo assim que Florianópolis era uma cidade com menos de 50 mil habitantes. Ali perto ficavam o porto madeireiro, a empresa Água Santa Catarina e um abatedouro de animais. “Naqueles anos, em dias de chuva, a gente demorava duas horas para ir até o Norte da Ilha, e havia lugares em que nem dava para ar”, disse outro morador, Moisés Vieira. Para Tijucas, eram seis horas de viagem; para Porto Alegre, dois dias. Mudou muita coisa, mas os moradores, ocupados com seus afazeres, mal notaram as transformações acontecendo.
A travessia clandestina da carne 12176h
Originária de Biguaçu, a família de Rogério Livramento fez de uma propriedade localizada na rua Machado de Assis, próximo à cabeceira continental da ponte Hercílio Luz, um ponto estratégico para revender carne bovina e produtos agrícolas no Mercado Público de Florianópolis. Numa carroça puxada por quatro cavalos, geralmente de madrugada ou nos domingos à tarde (para driblar a fiscalização), ele, o pai e os irmãos atravessavam a carga para a Ilha, abastecendo o próprio açougue e outras bancas do principal entreposto comercial da cidade. “A carne vinha escondida embaixo de melancias ou folhas de bananeira, porque a prefeitura era a única fornecedora do Mercado e não permitia o produto de outras origens, considerado clandestino”, contou Rogério.
Donos de um dos dois açougues que havia no antigo Mercado, Livramento e sua família também transportavam carne de porco e galinha, mas nada era tão espetacular quanto a travessia das boiadas que vinham da Serra e se dirigiam para o abate, no bairro Pantanal. “Era uma poeirada sem tamanho, que agitava a rapaziada do Estreito”, disse ele, contando que alguns animais chegavam a cair da ponte, na pressa para se livrar da vertigem. “Mas eles não morriam, nadavam até o outro lado, onde eram reintegrados ao grupo”.
Livramento conheceu outros carroceiros que vinham de Biguaçu, Antônio Carlos, Três Riachos, São Miguel e até dos Ganchos para vender seus produtos na Capital, sempre cruzando a ponte nas horas de pouco movimento. Quando chegaram a geladeira, os frigoríficos e os primeiros caminhões, as carroças perderam espaço, assim como a carne de abatedouros informais. Desse tempo, quando chegava a atravessar de carrinho de mão para comprar gás na rua Conselheiro Mafra, ele guardava no açougue uma ferradura que seu pai encontrou em cima da ponte, nos tempos do piso de madeira.