A tradição da Ilha está sendo mantida a golpes de enxó no terreno de um casarão açoriano datado de 1860 em Santo Antônio de Lisboa, ao Norte da Ilha. No gramado em frente ao tombado Engenho dos Andrade, o músico, pescador e canoeiro Nilo Sergio Conceição, conhecido como Nilera, 65 anos, vem talhando um tronco de garapuvu para construir a chamada canoa de um pau só.

Árvore símbolo de Florianópolis, o garapuvu é protegido por lei e não pode ser derrubado sem autorização dos órgãos ambientais. O tronco que começou a ser esculpido por Nilera, como é conhecido, é resultado da força dos ventos do ciclone Bomba. A árvore caiu na Vargem Pequena causando prejuízos na rede elétrica e foi recolhida pela Comcap. “Um funcionário sabia da utilidade do garapuvu e entrou em contato com a gente, antes que fosse tarde”, conta Claudio de Andrade, proprietário do Engenho dos Andrade.
O tronco mede cerca de quatro metros de extensão e é do tipo vermelho, menos comum na Ilha, segundo Cláudio. “Ele é melhor para fazer a canoa, pois tem a madeira mais resistente. Mas como tem apenas quatro metros, vai virar um batelão (canoa pequena)”, explica Claudio. Para ser uma autêntica canoa açoriana, o tronco precisaria ter de seis a sete metros de extensão. Mas o desafio é o mesmo e essa é a segunda canoa que Nilera constrói a partir de um tronco de garapuvu. “A paixão pela canoa veio junto com a música”, conta o fundador do grupo musical Gente da Terra na década de 80.
A primeira canoa foi construída a partir de um tronco de garapuvu amarelo há três anos, também no gramado do Engenho dos Andrade. O processo todo foi documentado pelo jornalista, historiador e morador da região, Celso Martins, falecido em 2018. Depois de concluída, a embarcação entrou no mar no bairro João Paulo e veio até a ponta do Sambaqui. Mas segundo Nilera, o tronco do garapuvu era “muito estreito”, a madeira não estava tão bem preservada, e a canoa ficou “bandoleira”, ou seja, perigosa.
Para fazer a segunda canoa, Nilera buscou mais conhecimento em vídeos na internet, mas também confia na própria experiência. “Eu gosto tanto de canoa e tenho tanto contato com a canoa que sei como fazer, já está na minha cabeça”, conta Nilera, que costuma cochilar na canoa que utiliza para pescar tamanha é a paz que sente dentro da embarcação.
O tronco repousou no gramado do Engenho dos Andrade no último dia 2, e as primeiras 24 horas foram apenas de medições. Com golpes de enxó e machadinha, o tronco de quase três toneladas de peso vai sendo talhado para se transformar em uma pequena de canoa de 100 quilos de peso, com boca de 60 centímetros.
Mesmo com a ajuda de amigos como Neri de Andrade e Júnior Branco, Nilera calcula que o trabalho deverá se estender pelos próximos dois a três meses. “Vamos ver, pois já tem mais um outro tronco esperando”, completa o músico, em referência a um garapuvu que caiu pertinho, no pátio do SESC Cacupé.
Embarcação é herança dos índios carijós
A canoa de um pau só é uma das heranças que os índios carijós rearam aos açorianos, que utilizavam a embarcação para pesca, além de meio de transporte de cargas como legumes, verduras, olarias vindas do Mercado Público. Essas embarcações também foram, por muito tempo, a forma de deslocamento entre a ilha e o continente.
As características do garapuvu ajudam na fabricação manual da embarcação. É uma madeira leve e macia ao tato, o que facilita o entalhe. Se bem cuidada, pode virar uma peça centenária. Outro detalhe é o diâmetro do tronco da árvore, que possibilita a escultura de “uma canoa em um pau só”. Pela raridade, essas embarcações chegam a ter um valor comercial que varia de R$ 5 a R$ 10 mil.
Os açorianos incrementaram esse conhecimento com a instalação de bordas, e transformaram a então canoa de um pau só em canoa bordada. O “ório” tem a função de deixar a embarcação mais alta, facilitando a entrada no mar, sem inundar a embarcação em dias de mar agitado. Os açorianos utilizaram muito a árvore a partir de 1950, razão pela qual a árvore quase foi extinta no litoral sul.
O corte da árvore foi proibido em 1992 junto com tombamento da árvore como símbolo de Florianópolis, e a produção das canoas de um pau também diminuiu. Os garapuvus seguem crescendo nas encostas dos morros da Ilha, com destaque para a região do Morro do Badejo na Costa da Lagoa. Na época de floração, entre outubro a dezembro, é possível reconhecer o garapuvu com sua cor amarela, em meio ao verde da Mata Atlântica.