Com folhas verdes nem sempre espinhosas e inflorescências vermelhas, amarelas, róseas, lilás e, às vezes, pigmentadas de branco, elas nascem no solo fértil da encosta ou na aridez da restinga; crescem sobre troncos de árvores e, resistentes, até sobre rochas, enquanto outras parecem suculento abacaxi. Atraentes pelas cores fortes e abundantes no que restou da mata atlântica, as bromélias são importantes indicadores de atividades de diversos insetos, entre eles as abelhas nativas na Ilha de Santa Catarina.
A combinação entre as plantas coloridas, que florescem apenas uma vez e depois secam, e as abelhas-sem-ferrão, produtores de mel com sabores inigualáveis e variados efeitos medicinais, indica, também, os níveis de preservação e degradação da floresta que circunda a cidade. Dentro do universo encantado delas e, consequentemente, da função que desempenham na preservação florestal e no equilíbrio ambiental do planeta, um detalhe intrigou os pesquisadores Rafael Kamke, 33, e Josefina Steiner, 60, do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina. A exclusividade dos pequenos insetos na polinização da Aechmea caudata, bromélia comum nas matas nativas da Ilha, que, apesar da beleza das cores e suculência floral, é ignorada por beija-flores, borboletas e libélulas.
Em uma década de cooperação técnica com a professora Anne Zillikens, da Universidade de Tübingen, na Alemanha, os pesquisadores do Lanufsc (Laboratório de Abelhas Nativas da Universidade Federal de Santa Catarina), concentraram os estudos na Unidade de Conservação Ambiental Desterro – área de 490 hectares bem preservados entre os morros de Cacupé, Saco Grande e Lagoa da Conceição, no maciço Norte. Também realizaram pesquisas em restinga e outras matas da Ilha.
Seja no ambiente fértil da encosta, na secura da restinga ou no fiapo de solo acumulado nas frestas das rochas, as bromélias formam microcosmos capazes de atrair polinizadores e, ao mesmo tempo, encantar leigos e pesquisadores. “Oferecem água, húmus e inflorescência de grande diversidade de cores”, diz a professora Josefina, que destaca outra característica própria da Aechmea caudata, a bromélia exclusiva das abelhas e mamangavas (Bombus morio). “As flores se abrem da base para cima”.
A resposta exata ainda está por vir, mas Rafael Kamke acredita que, neste caso específico, os demais polinizadores abrem mão da competição por frequentarem bromélias com mais néctar. “É uma possibilidade”, pondera. Em outras espécies, como a Aechmea nudicaulis, abelhas e beija-flores se revezam pacificamente na função polinizadora.
Sociais, solitárias ou parasitas, todas vieram das vespas
A pesquisa do LANUFSC abrange, também, espécies solitárias, como a abelha cortadeira, cujo ciclo de vida pode durar desde alguns meses até mesmo dois anos. As abelhas adultas destas espécies vivem em geral alguns meses. O curioso é que não chegam a conhecer os descendentes.
Também descendente das vespas, escondidas na mata da Ilha moram abelhas parasitas, aquelas que invadem ninhos de outras abelhas para alimentação e criação das próprias larvas. As vespas, aliás, são a origem inclusive do ferrão, utilizado por elas para anestesiar presas, e suas larvas consomem esta proteína animal, e transformado em órgão de defesa das outras abelhas, dentre ela a espécie Apis mellifera, hoje aqui conhecida como abelhas africanizadas introduzidas no Brasil na década de 1950. Atrofiado ao longo da evolução das espécies, o ferrão tornou-se arma desnecessária na rotina polinizadora das abelhas-sem-ferrão – muitas destas espécies são minúsculas, mas nem todas são dóceis.
Pesquisadores localizam espécie endêmica da Ilha
A vedete da coleção de abelhas do LANUFSC é manezinha, pouco conhecida, mas presente em duas regiões da cidade. Trata-se da Monoeca catarina, localizada pela primeira vez em 1980 segundo Rafael Kamke e é considerada endêmica de Ilha de Santa Catarina. “Até o momento, não se tem outro registro da ocorrência desta espécie em outra parte do mundo”, informa o pesquisador.
Estas abelhas escavam os ninhos no solo e são praticamente imperceptíveis por leigos. Ninhos da Monoeca catarina foram catalogados em Naufragados, no extremo Sul da Ilha, e no Santinho, ao Norte. Segundo os pesquisadores da UFSC, outra característica desta espécie é o fato de coletar o óleo das flores, além de pólen e néctar.
No Lanufsc também é possível conhecer uma das menores abelhas do mundo, a Leurotrigona muelleri, conhecida como abelha lambe-olhos. Esta abelha é uma das espécies ameaçadas de extinção, como várias coleguinhas desaparecidas por desmatamentos, queimadas e agrotóxicos. São 14.000 abelhas expostas em gavetas envidraçadas protegidas com naftalina em três armários cuidados como verdadeiros baús do conhecimento pela professora Josefina Steiner.
Conhecer para preservar
Estimular a produção e o consumo de mel é uma das maneiras de perpetuação das espécies de abelhas-sem-ferrão que, até pelo tamanho da colônias, estocam muito menos mel em relação às colméias de abelhas africanizadas introduzidas o Brasil em 1956. A dica é da professora Josefina Steiner, do Laboratório de Abelhas Nativas, do CCB da UFSC.
A observação atenta da natureza é outra forma de preservá-las, ressalta a professora. “Às vezes, estamos mexendo no jardim ou na horta do quintal e elas estão por ali, polinizando e coletando o néctar das flores silvestres ou de plantas cultivadas”, diz. Para o cidadão leigo, explica a professora Josefina, o inseto na flor pode ar despercebido. Muitas destas abelhas, com modo de vida social ou solitário vivem em ninhos presentes no solo, em cavidades ou em ocos de troncos de árvores.
Apesar do manejo aparentemente facilitado pela ausência de ferrão, nem todas as abelhas nativas são doces. A espécie tujuba, por exemplo, costuma mordiscar as pessoas, na pele ou cabelo ao se sentirem ameaçadas. Criá-las, portanto, requer mais do que paciência e paixão pela natureza.
“É preciso conhecimento técnico para formação de colônia e consciência ecológica. Não se pode sair por aí derrubando árvores para realizar a coleta dos ninhos”, reforça. Na natureza, lembra Josefina Steiner, plantações de trigo e milho, por exemplo, são polinizados pelo vento, mas a maioria das espécies vegetais (de 60% a 80%) dependem de animais polinizadores, como abelhas, beija-flores, borboletas, libélulas, morcegos e mariposas.
Produção e consciência no mesmo sítio
Em Ratones, no começo do caminho para a Costa da Lagoa, o agrônomo Pedro Faria Gonçalves, 34, do sítio Flor de Ouro, mantém uma relação bem próxima às abelhas nativas. Pioneiro na Ilha e referência estadual na atividade, ele cria 15 espécies espalhadas em pequenas caixas sob árvores, cercadas de bromélias e flores ou dependuradas nas paredes da casa.
“Algumas são muito pequenas e estocam pouquíssimo mel, como a mirim. Mas, são fundamentais na função polinizadora de pequenas flores e plantas silvestres”, reforça o agrônomo, que destaca outro importante resultado do trabalho das abelhas. “São essenciais na produção mundial de alimentos, mesmo nas áreas degradadas pela agricultura convencional”, acrescenta.
Pedro cita as macieiras da serra catarinense, que em determinados períodos do ano alugam colmeias para polinização. Apaixonado pelas coisas simples e naturais, o agrônomo vê as abelhas como o “elo perdido, elemento sutil e vital para equilíbrio do sistema ambiental e da vida no planeta”.
Desmatamentos, queimadas, síndrome da desorientação e outras doenças causadas por uso intensivo de agrotóxicos na agricultura convencional estão entre as causas mais prováveis do desaparecimento delas, segundo Pedro Gonçalves. Ele, no entanto, citar teoria exotérica de que teriam cumprido o ciclo de vida na Terra e estariam, aos poucos, voltando para Vênus, o planeta de origem.
A irapuá, espécie sem valor comercial e, de certa forma, discriminada popularmente, também está presente no sítio Flor de Ouro. Imensa colmeia de argila ornamenta a galhada seca de garapuvu centenário e abriga volumoso enxame que, ao contrário da organização característica das demais, estoca o mel no mesmo compartimento onde aninha e cria as larvas e deposita os próprios dejetos. Ao se sentirem ameaçadas, formam grupos que se enrolam nos cabelos e demais partes peludas do predador.
:: Curiosidades ::
Alimento e remédio indispensáveis para a sobrevivência das populações primitivas do Brasil, as abelhas nativas produzem pequenas quantidades de mel. Com menor concentração de açúcar e mais líquido do que o convencional das africanizadas, o produto é rico em antibióticos (inibinas), vitaminas e minerais.
São essenciais, também, para a perpetuação das florestas. São responsáveis por pelo menos 80% da polinização dos ecossistemas vegetais, mas a redução do habitat natural por desmatamentos e queimadas mantém algumas espécies na lista dos animais ameaçados de extinção na mata atlântica.
O mel das abelhas sempre esteve presente na cultura indígena, e ainda hoje é utilizado na medicina popular tradicional para tratamento de tosses, bronquite, resfriados, debilidade imunológica, fraqueza, catarata, queimaduras, cicatrização e restauração da flora intestinal, por exemplo.
Além dos benefícios medicinais, o mel das abelhas nativas brasileiras é utilizado na culinária para compor pratos doces ou salgados, como molhos de saladas, patês, temperos para carnes, sucos e sobremesas. Resultados de rica composição de flores silvestres, sabor e aroma são incomuns.
Em 1835, missões jesuítas introduziram abelhas da Europa na mata brasileira. Em 1955, o pesquisador Warwick Keer trouxe colmeias da África para pesquisas no Brasil, com fuga e cruzamento de enxames que originaram nas africanizadas domesticadas em Santa Catarina a partir de 1964.
:: Laboratório de Abelhas Nativas da UFSC ::
Coleção científica – Acervo de estudos:
14.000 abelhas, com 460 espécies
BRASIL
4.500 espécies
SANTA CATARINA
320 espécies
18 sem ferrão
ILHA DE SANTA CATARINA
203 espécies
12 sem ferrão
NO MUNDO
Em torno de 20 mil espécies
Só 10% delas produzem e estocam mel
90% têm modo de vida solitário
Bromélias visitadas
Nidularium innocentti
Aechmea lindenii
Aechmea caudata
Aechmea nudicaulis
Aechmea ornata
Vriesea friburgensis