“A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós”. A ideia de humanidade descrita por um dos maiores poetas da língua inglesa, John Donne, em meados do século 16, se adapta com perfeição como desfecho da vida de um humilde agricultor catarinense que talvez nunca tenha ouvido falar dele.
Ivo Heerdt morreu na quinta-feira ada, dia 21, aos 79 anos. Sua partida, mais do que a perda do patriarca da família, representa o silêncio do badalar dos sinos da Igreja São Sebastião, no distrito de Vargem do Cedro, em São Martinho, no Sul catarinense.
Por mais de 75 anos, exerceu com orgulho a missão de sineiro na comunidade católica. A paixão pelo ofício vem desde a infância, quando aos quatro anos, seus pais, Henrique Felipe Heerdt e Regina Buss Heerdt, deixaram o bairro Rio São João e se estabeleceram no bairro Vargem do Cedro. Bairros de uma mesma cidade, mas que marcaram mundos diferentes na vida de Ivo.

E foi lá que o menino pode dar vazão a duas de suas paixões, declamar poesias e tocar o sino da igreja, ofício que exerceu por décadas até o fim da vida. Foi lá também que encontrou o amor e casou-se aos 26 anos, em agosto de 1967, com Lorivalda Mônica Sehnem Heerdt. O casal teve cinco filhos – Gildo, Edésia, Rita (já falecida), Angelita e Jairo -, cinco netos e três bisnetos.
Familiares e amigos contam que ele estava sempre disposto ao trabalho e exibia uma força incomum, comparada a de um touro, adquirida nas lidas no campo. Não hesitava em deixar os bois no pasto, cuidar do cultivo, mesmo na avançada idade e com hipertensão, tanto que em recente consulta médica foi liberado para fazer força e trabalhar na roça.
Como um bom ariano, tinha o otimismo como uma marca. E uma risada estrondosa, que jamais ava despercebida. Sua presença era marcante e revelada desde o forte aperto de mão a um abraço caloroso e entusiasmado.
Na manhã do dia 21, Ivo deixou cedo a casa à beira da estrada geral e se embrenhou na mata. Seu corpo foi encontrado horas depois, por volta do meio-dia, já inerte. Inicialmente, a família pensou tratar-se de acidente com o eucalipto que ele havia cortado, mas o atestado de óbito registra como causa da morte infarto do miocárdio.
Deixa na memória o fato de ter sido um homem impetuoso, apaixonado pela vida e de caráter irrepreensível, de ações sempre motivadas pela sua boa índole. Agora, enquanto descansa nos corações das pessoas saudosas, os moradores da comunidade sabem que os cortejos fúnebres não contarão mais com o como que só ele sabia imprimir ao sino.
O velório, em tempos de pandemia, foi rápido e aos familiares e primeiro e segundo grau. Em seu sepultamento, outro sineiro tentou reprisar o mesmo badalar fúnebre que só a experiência e Ivo sabiam imprimir, e que marcarão para sempre a sua comunidade.

O linguajar dos sinos b445z
Afinal, só um sineiro tão experiente como Ivo sabia que os sinos falam. Antigo instrumento de comunicação das igrejas, eles ainda anunciam não só a hora das missas, mas datas festivas, nascimentos e falecimentos. E para cada ocasião, um toque. São mais de 40, entre os festivos e os fúnebres, e ainda os repiques. Dobres simples, dobres duplos, repiques…. Tocar o sino é realmente uma arte, uma linguagem muito especial. E não significa apenas movê-lo de um lado para outro. Há uma combinação que só quem toca sabe, um nome para cada toque e só quem ouve pode entender o efeito que ele reproduz.
Tanto que no Estado de Minas Gerais, o Iphan (Instituto Nacional do Patrimônio Histórico), considera o badalar dos sinos patrimônio histórico cultural imaterial do Brasil. Segundo o Iphan, os nomes dos toques dos sinos foram criados pelos sineiros ainda no tempo colonial e preservados na tradição oral. Muitos deles são onomatopeicos, exprimindo o som ou o ritmo que produzem.