Engana-se quem pensa que levar a vida praticamente inteira dentro de um hospital é aparentemente angustiante, triste e monótono. Quem a muito tempo dentro de uma instituição como o IPQ (Instituto Psiquiátrico de Santa Catarina), localizado no bairro Colônia Santana, em São José, acaba “adotando” os funcionários e profissionais da saúde como os únicos amigos e familiares.
Para os internos, um vínculo familiar é criado por acaso e pela convivência diária. No IPQ, há mais de 220 pacientes-moradores, pessoas que chegaram ao hospital e, por falta de condições financeiras ou apoio familiar, nunca voltaram para casa. Muitos não conseguem nem lembrar como chegaram ali, mas superaram o trauma e deram continuidade a vida, mesmo sem os laços familiares.
Romualdo Oliveira, 73, é um belo exemplo. Ele encontrou na pintura e na prestação de serviços à comunidade opções para se distrair e ocupar o tempo. Ele faz parte de um grupo de 22 pessoas que vivem nas residências terapêuticas, situadas fora do hospital e inseridas no bairro, mas sem perder a ligação com o IPQ.
Ele chegou ao local quando tinha 19 anos, não lembra como nem o porquê, depois de uma crise epilética. Abandonado duas vezes, pela família verdadeira e adotiva, ele conta que começou a viver depois que foi acolhido na instituição, mesmo sem ser diagnosticado como doente. “O abandono é doído, terrível”, relata Oliveira.
Independente, o morador lembra que se sente bem e tem tudo o que precisa no IPQ. Os colegas que dividem a casa se transformam em irmãos e os funcionários em uma grande família.
Arte como atempo
Mais de 20 quadros já foram pintados por Romualdo Oliveira. Telas grandes, em tinta óleo, fazem parte do acervo. Ele prefere as paisagens e conta como aprendeu a usar e misturas as cores. “Frequento as aulas da escola profissional há dois anos. A professora ajuda muito e, com a aposentadoria, compro os materiais que preciso”, comenta ele que já vendeu alguns quadros e outros preferiu dar de presente.
Assim como Oliveira, outro morador da casa é Paulo Roberto Bonatelli, 56, que também aprendeu a pintar. Diagnosticado com transtorno de humor, ele toma a medicação diária, mas tem uma vida normal. Diferente do colega, Bonatelli tem contato com as irmãs uma vez por mês, mas conta que prefere viver na Colônia Santana.
“Minhas irmãs me trouxeram há mais de dez anos para cá. Disseram que não era mais possível morar com elas”, conta. Ele diz que o apoio delas é fundamental, mesmo estando distantes, mas que não troca a moradia na residência terapêutica por nada.
Moradora de outra casa, Janete dos Santos, 49, está desde os dez anos no IPQ. Sem saber como chegou ao hospital, ela lembra pouca coisa dos tempos de criança. Diagnosticada como doente mental, ela conta que nunca mais viu nenhum familiar. “Gosto de morar aqui. Antes eu vivia na rua e bebia até água suja”, contou à reportagem enquanto fazia as unhas em um salão de beleza próximo.
Residências terapêuticas
O programa do governo federal ‘De volta pra casa’ foi criado na década de 90, a partir de um movimento antimanicomial. Os pacientes que estavam há mais de dois anos internados e se encontravam em fase de alta hospitalar puderam participar. Um benefício, que hoje é de R$ 320, é pago mensalmente aos doentes que voltassem para casa ou saísse do hospital para morar em outro lugar.
Com isso, esses 22 pacientes ganharam independência social e financeira, mas não deixaram de receber a medicação, ter atendimento psiquiátrico e psicológico. “Este é um recurso importante para resgatar a nossa cidadania. Temos uma boa relação com os colegas de moradia”, explica Marcelo Oliveira, 45, morador do IPQ há 15 anos.
Ele divide a residência terapêutica com outros cinco homens, entre eles está Romualdo Oliveira e Paulo Bonatelli. Todos estão sob os cuidados da supervisora Cláudia Maria da Rosa, técnica istrativa do IPQ. Ela cuida de três casas, separa a medicação e se tornou a mãe, amiga e confidente desses pacientes em alta.
“Às vezes, eles comentam que sentem falta da família. O serviço social tenta entrar em contato com os familiares, mas na maioria das vezes não tem sucesso”, ressalta Cláudia. A supervisora afirma que eles se sentem valorizados podendo cuidar da casa, das próprias contas ou prestando serviços à comunidade.
Sem identidade
Diagnosticados com esquizofrenia, transtornos de humor e deficiência mental, o Instituto Psiquiátrico atende 223 pacientes-moradores, mais 22 nas pensões, sendo 79 mulheres. Somente cerca de 50 pessoas têm algum tipo de contato com a família. Há mais 160 vagas para tratamentos isolados.
A enfermeira Noezi Botelho, conta que a maioria vive no hospital há mais de 20 anos. “A família abandona porque não tem condições de cuidar ou a doença não permite que o paciente retorne para casa”, observa. Alguns pacientes, simplesmente, apareceram na porta do hospital, sem identidade e sem nome.
Conforme a enfermeira July Marquardt, antes de 1995, os que chegavam sem documento eram chamados de ‘não identificados’ e recebiam um número equivalente a ordem de chegada. “Se a família não aparecesse para buscá-los, os nomeávamos, fazíamos a documentação e, muitos, estão aqui até hoje”, acrescenta.
O diretor do IPQ, Paulo Marcio Souza, expõe que uma família acaba se formando entre os pacientes, funcionários e comunidade. “Alguns servidores atendem na mesma enfermaria durante anos, por exemplo, e desenvolvem relações familiares além das profissionais”, afirma. Apesar de isso não ser visto com tranquilidade, quando há um falecimento o vínculo é quebrado e é preciso trabalhar o luto.
BOX
Instituto Psiquiátrico de Santa Catarina
-245 pacientes-moradores
-79 mulheres
-166 homens
-22 vivem nas residências terapêuticas
-Cerca de 50 têm contato com a família
-160 vagas são para tratamentos de até um mês
-O IPQ é mantido pela Secretaria do Estado da Saúde
-Investimento mensal é de R$ 2,6 milhões