O currículo do cirurgião pediátrico catarinense Murillo Ronald Capella não caberia em duas páginas do jornal. Por isso, em vez de citar todas as funções e cargos que exerceu, os prêmios que recebeu e as obras que publicou, demos a palavra a ele para falar de fatos marcantes de sua vida, de como quase se tornou jogador de futebol, de sua veia de cronista, de como é possível ter uma vida longa e saudável e do estágio da pediatria em Santa Catarina e no Brasil.
Por fim, ele relembra o caso de um dos tantos pacientes que salvou e como um abraço de reconhecimento pode ser importante mesmo para um homem com carreira tão extensa.

Aos 83 anos, o Dr. Murillo se prepara para assumir, no dia 16 deste mês, a diretoria técnica da clínica Casas Capella de Saúde, criada por um grupo de primos-irmãos baseados no Rio de Janeiro.
Tem mais livros no prelo e continua ensinando o que sabe, como professor universitário. E lendo Machado de Assis, Fernando Sabino, Rubem Braga e outros autores que o inspiram para escrever suas crônicas.
ND – Sua carreira como médico é longa e seu currículo é invejável, mas conhecido por muitas pessoas. Por isso, vamos começar por algo inusitado. O senhor quase foi jogador de futebol. Portanto, a medicina por pouco não perdeu um de seus grandes expoentes em Santa Catarina. Como foi essa encruzilhada em sua vida?
Murillo Ronald Capella – Sempre gostei muito de futebol, a ponto de ter batido bola até os 63 anos. Comecei jogando no Largo 13 de Maio e depois atuei no Colegial, time vinculado ao Colégio Catarinense que fez história em Florianópolis. Logo após ter ado no vestibular no Paraná, aos 18 anos, em 1956, meu pai descobriu que eu era aspirante do Coritiba e deu o ultimato, por meio de uma carta: tinha de escolher entre a medicina e o esporte. A carreira de atleta acabou ali, mas eu continuei jogando com os colegas da faculdade, em times divididos pelo sobrenome de cada aluno – havia os de origem espanhola, os descendentes de árabes, os filhos de italianos, e por aí afora.
Mesmo fiel à medicina, portanto, o lado de atleta nunca deixou de se manifestar…
Formado em 1961, cumpri a residência no Rio de Janeiro, mas de volta a Florianópolis fiz parte de um time de médicos da cidade que jogava no antigo Abrigo de Menores, na Agronômica. Também atuei no futsal e no futebol society na ACM (Associação Catarinense de Medicina). Parei depois dos 60, mas ainda sou um aficionado: leio muito sobre futebol, acompanho os noticiários, assisto aos jogos, as Copas do Mundo são uma festa em casa, com a presença dos filhos, noras e netos. Sou torcedor do Avaí, mas já tive quatro cadeiras no estádio do Figueirense quando o time foi o primeiro representante catarinense no Campeonato Brasileiro. Também sou botafoguense, no que fui acompanhado pelos meus três filhos.
Fui vice-presidente da FCF (Federação Catarinense de Futebol), na gestão de Delfim Peixoto, e juntei um material que deverá ser transformado em livro, com o título de “As vozes do futebol televisivo”, no qual analiso os estilos de narradores e comentaristas desde a Copa do Mundo de 2002, ando pelos campeonatos catarinense e brasileiro.
O senhor também é um cronista reconhecido. Fale sobre essa queda pela literatura e os temas que aborda nos textos que escreve.
Tenho nove livros publicados, e o 10º vai sair em breve. Três deles são sobre medicina, um aborda a história da Academia de Medicina de Santa Catarina e cinco são de crônicas. Um deles, “Encontros Marcantes”, fala de meus contatos com figuras como Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda, Albert Sabin, Garrincha, Romário e Roberto Dinamite. Publico crônicas no “Jornal da Unicred Florianópolis” e na revista “Mundo Cooperativo”, com foco na saúde e na economia ligadas à previdência. Agora, fui indicado para escrever a biografia de Valério Mattos, que foi jogador de futebol, auditor fiscal, criador do Clube dos Gourmets e do restaurante Pirão, entre outras tantas atividades. E tenho grande paixão pelo cinema: vejo de quatro a cinco filmes por semana e tenho uma boa biblioteca sobre o assunto. Gosto de filmes antigos e tenho Charles Chaplin como grande ídolo.
Com mais de seis décadas de ensino, pode-se dizer que milhares médicos de Santa Catarina foram seus alunos.
Além de me aposentar compulsoriamente como cirurgião pediátrico do Estado aos 70 anos, fui durante três décadas professor do curso de medicina da UFSC e ajudei a criar a residência médica no Hospital Infantil Joana de Gusmão. Também lecionei na Univali, onde implantei o curso de medicina junto com os professores Bruno Schlemper e Nelson Grisard. E até hoje dou aulas na Unisul, nas disciplinas ética médica e bioética. Estou na área do ensino médico desde 1957 – portanto, há quase 63 anos. Só na UFSC ajudei a formar mais de três mil médicos, além de cerca de 400 na Univali e muitos outros nos 16 anos em que estou vinculado à Unisul. É por isso que sou tão conhecido em todo o Estado.
E ainda sobrou tempo para se dedicar à política.
Minha experiência político-istrativa inclui o período como vice-prefeito na gestão de Angela Amin e os cargos de secretário municipal de Saúde e de adjunto da Saúde do governo do Estado, sendo que assumi em diversas oportunidades a função de secretário. Também fui diretor do Hospital Infantil Joana de Gusmão e superintendente da Fundação Hospitalar de Santa Catarina.
Sendo médico, o senhor sabe que muitos profissionais da sua área não cuidam bem da própria saúde. O que explica a sua vitalidade, disposição e o fato de continuar encarando sempre novos desafios?
O bom relacionamento humano explica a energia que me garante saúde física e mental. É claro que uma boa dieta e a prática de esportes e exercícios físicos também ajudam muito. Mas há três anos, por exemplo, temos uma confraria na qual o membro mais jovem tem 71 anos. Paulo Konder Bornhausen, o mais velho deles, está com 90 anos. Os demais, pela ordem de idade, são Mário Petrelli, eu, José Bastos, Aurélio Rotulo Costa Araújo, Júlio Cesar Gonçalves, o coronal Itamar Diniz, Newton Brüggemann e Luiz Alberto Silveira. A maioria são advogados e médicos. Nos reunimos a cada duas semanas e resolvemos, em nossas conversas, todos os problemas do mundo (risos). Temos grupos de WhatsApp e Facebook, e nos divertimos muito.
Quer dizer que rir e ter amigos aumenta a chance de ter uma vida longa e saudável?
Isso aumenta a imunidade e cria barreiras para as doenças que nos ameaçam. Todos os nossos órgãos envelhecem, mas hoje há remédios e tratamento para os males que mais matam, como a hipertensão e o diabetes.
Como vê a situação da pediatria em Santa Catarina e no país?
A pediatria é a segunda especialidade médica que mais evoluiu nas últimas décadas, atrás apenas da cardiologia, especialmente por causa dos avanços tecnológicos. Também a prevenção e a imunização, por conta das vacinas, além do aumento do saneamento básico (que reduziu a verminose, a desidratação e as diarreias), ajudaram a mudar o cenário para melhor. Por fim, o aleitamento materno é outro fator importante na diminuição dos índices de mortalidade infantil. A possibilidade de diagnóstico precoce e a correção de males congênitos – a minha área de atuação – facilitam a detecção de doenças ainda no útero da mãe, permitindo que a criança seja operada ao nascer. Até nos casos de prematuridade, quando observados os cuidados básicos, há mais chances de sobrevida.
Florianópolis e o Estado avançaram muito na questão dos cuidados básicos com as crianças.
Santa Catarina é o primeiro Estado do Brasil em atenção primária. Quando era prefeita, Angela Amin criou o programa Capital Criança, que mudou a atenção básica, transformando Florianópolis numa cidade com taxa de mortalidade infantil de primeiro mundo. Hoje, o setor de cirurgia pediátrica do Hospital Joana de Gusmão tem o melhor serviço do país no ensino da especialidade e é referência do mesmo na América do Sul.
O que foi mais marcante em sua longa carreira de médico?
Meu maior orgulho foi ter recebido, em 2017, um diploma da Federação Mundial das Associações de Cirurgiões Pediatras como reconhecimento pela contribuição a esta especialidade na América do Sul. Tenho 138 trabalhos publicados em revistas nacionais e estrangeiras, além de 45 capítulos em livros dentro e fora do Brasil.
Cite um episódio que marcou sua atuação como cirurgião.
No livro “Pacientes inesquecíveis – Reminiscências e reflexões”, de 2018, relato experiências que marcaram a minha vida de cirurgião pediátrico, incluindo a cirurgia em um recém-nascido de Laguna chamado Antônio, que chegou com atresia do esôfago. Trata-se de um defeito congênito que impede que o alimento chegue até o estômago, agravado neste caso por uma estenose hipertrófica do piloro, canal que fica entre o estômago e o duodeno. Ele foi operado com sucesso no sétimo dia de vida, mas apresentou outros problemas. Em um mês, o menino teve corrigidas quatro anomalias congênitas, um caso raríssimo no país. Em 2016, festejando meu aniversário na Associação Catarinense de Medicina, fui surpreendido com a presença da família – o próprio Antônio, seus pais e a mulher, que vieram de longe para me cumprimentar. Na despedida, o rapaz, então com 30 anos, apertou minha mão e disse: “Obrigado por ter salvo minha vida”. Foi um dos momentos inesquecíveis de minha carreira.
Como vê a situação de Florianópolis, sua cidade, que conheceu com outra cara tantos anos atrás?
Entendo que o progresso melhora a vida das pessoas, mas no caso de Florianópolis faço algumas ressalvas. Não acho que a solução para a imobilidade urbana, por exemplo, será com novos sistemas viários, e sim pela educação, que inclui uma nova consciência de locomoção, o transporte solidário e maior uso da bicicleta no dia a dia.