Um grito mais alto, um soco na mesa que assusta, um xingamento, um episódio de chantagem emocional ou mesmo um comentário que humilha e rebaixa. A violência psicológica pode acontecer de muitas formas, por vezes bem sutis, dentro de um relacionamento.

Ao contrário da agressão física, que é explícita e deixa evidências claras, o abuso emocional costuma ser interpretado como uma “atitude impulsiva” da personalidade “forte” do agressor. No entanto, essas agressões capiciosas podem deixar marcas emocionais profundas e intransponíveis em quem as sofre.

O controle é uma das características mais recorrentes deste tipo de violência e que geralmente leva aos desfechos mais graves, muitas vezes fatais.

A catarinense Fabiana* viu sua vida social e brilho se esvaírem em meio a uma série de restrições abusivas que foram sendo impostas pelo seu então companheiro sem que ela percebesse. Isso porque o discurso tóxico do parceiro a fazia acreditar que as pessoas ao seu redor não a queriam bem ou tinham segundas intenções. Além disso, para fugir dos conflitos e das brigas por ciúme, Fabiana* ou a evitar qualquer conduta que pudesse “desagradar” o parceiro. E assim ela foi se diminuindo para caber em uma caixa que só a apertava e causava dor.

“Quando ele me destratava com as palavras, ele queria me diminuir”

Fabiana*

Este tipo de ação tem como intenção fragilizar o estado emocional e psicológico da vítima. O autor de violência recorre a várias artimanhas para deteriorar a saúde mental da vítima. Em relacionamentos afetivos é mais comum esses artifícios serem usados para deixar a outra parte dependente emocionalmente sob a justificativa de excesso de zelo e cuidado.

Segundo a psicóloga Kátia Teichmann, a violência sempre começa a partir do controle.

“A gente vê isso já na adolescência. Jovens que se submetem a certas demandas no início do relacionamento como, por exemplo, manter atividades sexuais fora da maturidade delas. Isso já indica que essas adolescentes crêem ser necessário se submeter a este controle externo

Psicóloga Kátia Teichmann

Fabiana* se deixou levar por esta realidade. “Você olha para traz e vê que todo mundo te virou as costas”, diz ela, com lágrima nos olhos. “Você desacredita do seu potencial. E aí sente que acabou a sua vida e fica vítima daquilo”, lamenta.

Cristina*, também moradora de Santa Catarina, hoje adepta da terapia e vivendo um relacionamento saudável após 20 anos de repetidas relações abusivas, alerta: “Não é normal alguém gritar com você! Não é normal alguém diminuir você!”, ressalta.

Perfil das vítimas de violência psicológica 6t2a4a

O projeto Justiceiras – parceria entre os institutos Justiça de Saia, Bem Querer Mulher e Nelson Willians -, que nasceu há dois anos com o propósito de apoiar mulheres em situação de risco por meio de uma rede de 10 mil voluntárias no Brasil e no exterior, traz dados alarmantes sobre violência psicológica contra a mulher.

De março de 2020 a março de 2022, o projeto realizou 9.483 atendimentos em 26 estados brasileiros, além do Distrito Federal, e em 27 países. Os relatos de violência psicológica corresponderam a 82,96% dos casos, seguidos pelos de violência patrimonial (68,59%), violência física (59,06%), ameaça (54,3%) e violência sexual (52,48%).

Ainda de acordo com os índices divulgados pelo projeto no mesmo período, os locais das agressões são, majoritariamente, as residências das vítimas: 74,92%. Na sequência vêm locais variados públicos e privados (8,83%) e, por fim, as redes sociais (7,04%). A frequência da violência psicológica também se mostra mais comum em três faixas etárias específicas: entre 31 e 40 anos (3.009 vítimas), entre 21 e 30 anos (2.392 vítimas) e entre 41 e 50 anos (1.617 vítimas). Além disso, 252 adolescentes de até 15 anos sofreram este tipo de agressão, bem como 475 jovens de 16 a 20 anos e 650 mulheres com mais de 51.

Os índices levantados pelo Projeto Justiceiras se estendem, ainda, à cor da pele. Segundo os dados, 48,74% das mulheres vítimas de violência se declaram brancas, 34,08% pardas, 12,3% pretas, 2,44% amarelas, 0,71% indígenas e 1,73% não informaram. É importante levar em consideração os perfis das mulheres que têm o à internet, à informação e ao projeto.

Ainda de acordo com o Justiceiras, quase metade das mulheres em situação de violência preferiram denunciar as agressões em ONG’s em vez de irem às delegacias especializadas. Dos atendimentos realizados entre março de 2020 e março de 2022, 3.934 mulheres em situação de risco (45,1%) fizeram seu primeiro pedido de socorro ao projeto.

O que caracteriza e como ocorre o ciclo do abuso emocional 38536b

Violência psicológica pode ser descrita como qualquer conduta que busque diminuir, manipular, controlar, humilhar, chantagear ou qualquer ato que cause danos emocionais à vítima. Está previsto no artigo 7 da Lei Maria da Penha, que protege a mulher desde 2006, e diz o seguinte:

Art. 7 da Lei Maria da Penha
A violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

“A Lei Maria da Penha é informativa e delimita as formas de violência. Vai estar sempre combinada ao código penal, explica a advogada criminalista Bruna Boldo.

Por ser de difícil contextualização, este tipo de violência pode ser a porta de entrada para a agressão física, ou mesmo para o feminicídio, que é quando a mulher morre pelo simples fato de ser mulher.

Segundo a psiquiatra Julia Trindade, o principal sentimento das mulheres que chegam ao seu consultório é o da culpa.“ Elas se perguntam: ‘O que eu fiz? Qual foi o meu erro? Porque que ele me agrediu?’. E ela não é culpada. Precisamos deixar isso muito claro. Munir estas mulheres de uma rede de apoio psicológico e psiquiátrico é fundamental”, defende.

Essa sensação ocorre porque quase sempre o ciclo da violência psicológica começa com a fase do “conto de fadas”, a qual os terapeutas chamam de “lua de mel”. A relação parece perfeita e as promessas soam como verdade.

Aí vem o período de tensão da primeira fase, que em um relacionamento abusivo vem acompanhada de ameaças, ordens e isolamento. Muitaz vezes, a vítima se afasta do ciclo familiar e social e sua autoestima começa a ser prejudicada.

Já na segunda fase a agressão provoca medo e faz com que o autor da violência tenha autoridade sobre a mulher. Em alguns casos, é neste momento que as vítimas criam coragem para romper a relação ou denunciar. Só que na maioria das vezes, a terceira faze, que vem a seguir, derruba essa força, pois o companheiro demonstra arrependimento, pede desculpas, uma nova chance e promete mudar. Quando a lua de mel reinicia, a mulher se vê presa ao ciclo novamente.

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Uma cartilha produzida no Distrito Federal como material educativo contra a violência doméstica apresenta uma analogia entre os anões que cercam a Branca de Neve no conto de fadas da Disney e as características que podem evidenciar um autor de violência. Segundo a descrição, o homem “Dunga” é aquele parceiro imaturo que não gosta de falar sobre a relação e invalida os sentimentos da companheira.







Os danos da violência psicológica 58j1t

O machismo e o controle formam o binômio para a ocorrência da violência psicológica. Por isso também é tão difícil identificar as relações abusivas e seus danos psicológicos que podem perdurar pelo resto da vida da vítima e de sua família.

A psiquiatra Julia Trindade lida há anos com esses traumas e alerta para a importância do acompanhamento psicológico dessas mulheres.

“Muitas vezes elas desenvolvem quadros de depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e tentam suicídio porque não sabem como sair da situação. Se vêem desesperadas ao ponto de achar que não há o que fazer. Não podemos deixar isso acontecer. São transtornos tratáveis com psicoterapia, tratamento medicamentoso e acompanhamento. As vítimas da violência psicológica podem, sim, melhorar. E é importante que elas voltem a ter autonomia e façam suas escolhas.”

Julia Trindade, psiquiatra

Onde pedir ajuda 3x5i14

É preciso coragem para romper com o ciclo da violência. É preciso entender também que tratar o autor também ajuda a diminuir índices tão cruéis contra a mulher. O baixo percentual de denúncias registradas por violência doméstica mostra que é preciso determinação para revelar as agressões e buscar medidas protetivas para ter o sistema como aliado, mesmo diante das dificuldades.

“O impacto dessa violência vai depender da rede de apoio. Se essa mulher tem amigas, se ela pode ar um serviço de qualidade que as escute, que a acolha. A violência é um assunto de ordem social. De saúde pública. Se a minha vizinha está gritando socorro ou pedindo ajuda eu tenho que fazer algo. Até porque, eu posso denunciar de forma anônima”, diz a psicóloga Iramaia Galleran.

Projeto Justiceiras

O projeto Justiceiras conta com 9.722 mulheres voluntárias em 27 países, entre elas psicólogas, médicas, advogadas, assistentes sociais e ativistas. O pedido de socorro pode ser feito por meio do site; via WhatsApp (11-99639-1212,), pelo e-mail gestã[email protected], ou pela conta do projeto no Instagram. A vítima (ou alguém que queira ajuda) deve preencher o formulário e aguardar o contato da equipe especializada. Também é possível fazer uma denúncia anônima todos os dias da semana, 24 horas por dia.

Disque 100 e Disque 180

Serviços gratuitos para denúncias de violações de direitos humanos e de violência contra a mulher

Polícia Militar: Disque 190 e Rede Catarina

Busque informações no batalhão de sua cidade.

Polícia Civil

Procure a DPCAMI de sua cidade.

Cras e Creas

Oferecem serviços para a prevenção de casos de agressões, além de cursos e o a benefícios sociais. Endereços e horários podem ser consultados através dos sites.

Centros de referência de atendimento às mulheres

Atendimento semelhante aos Creas, mas apenas para casos de violência contra as mulheres.

Defensoria Pública

Presta atendimento jurídico às vítimas de violência. Veja endereços e telefones por município no site da Defensoria Pública do Estado

Ministério Público Estadual

Atende pessoas em situação de vulnerabilidade. Busque informações e endereços no site.

REPORTAGEM e produção: AMANDA SANTOS • Pré Produção: Vitorya Navegantes • IMAGENS: MARCELO FEBLE e JACSON BOTELHO • Edição de texto: Reginaldo de Castro • EDIÇÃO DE VÍDEO: MARCOS OLIVEIRA • Edição de arte: Lucas Rezende • EDIÇÃO DIGITAL: LUIS DEBIASI e LUCIANA BARROS